terça-feira, 5 de julho de 2016

#1. NOTAS PARA FAZER UM CONTO... (Maia Alcoforado, 1899-1974)


Ao Carvalhão Duarte

Ao cabo da estrada que de Cantanhede fica apontada ao mar -- uma recta enorme, tamanha como uns dez quilómetros bem puxados, enfadonha e triste, com três montes de casas poisados nas ilhargas e alguns fornos de cal enrodilhando de fumo negro a ramaria dos pinheiros -- velhos, com mais de um século e altos como alarves -- aparece-nos de enfiada na ponta do nariz a Vila de Mira, que, ao contrário de Cantanhede, comarcã e burguesa, afidalgada e petulante, não tem na sua monografia capítulo de monta, nem réstia forte de alambicada pretensão... Terra de gente ordeira que o vinho em dias de arraial ou de mercado não torna ruim, trabalhadora e honesta, com uma percentagem que mal se enxerga em pilhas e madraços, ciosa dos bens que por direito de herança aferroa e arrecada com jeito económico, mas sem modos de usura -- para aqui me cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do berço à sepultura, num dia aziago, de sol esplêndido e luminoso, brincalhotando no ar a chuva miúda do seu pólen doirado...
O povo mirão que anda à bulha com o mar uma grande parte do ano, porque é pescador que se arroja e atreve com as suas charrafuscas e motins e que desentranha a terra a golpes de enxada e amamenta os filhos nas arrevezadas lições do trabalho -- precisa que, de quando em quando, falem dele nestes lençóis onde se esculpem letras e estampam gravuras, porque anda até os gornes da garganta farto de tanto ostracismo que o tolhe e engarrafa.» Pois se é raro o mapa onde se topa o nome da terra... -- e tem foral, que recebeu das mãos venturosas do Senhor D. Manuel I e é concelho antigo e mais remoto fora se Cantanhede não lhe tivesse, sorrateiro, surripiado a primeira autonomia há mais de trinta anos...
Foi aqui que em 1856, a 26 de Março, se amesendou com a morte o mavioso e rebelde Francisco Joaquim Bingre -- o Francélio Vouguense da Nova Arcádia -- e que, aquando da fúria pombalina, se agacharam parentes dos Távoras -- de quem ainda agora há restos, numa degenerescência vulgar, doentia e inútil...
O solo é fecundo, porque de bem trabalhada no alqueive não há leira que não resplenda, nem brilhe; quintal que não sorria para a gente com o seu pomar e a sua horta; vinhedo que pelo São Tiago não tenha os bagos pintados, limpos, carnudos -- que os pardais depenicam numa orgia arreliadora de amarrotados gorjeios...
De um lado o mar; do outro, a gândara -- a enfaixá-la, a cingi-la, em sombras e em claridade.
O mar estrebuchando a toda a hora de encontro às casas dos pescadores, feitas de madeira velha e de originais feições -- a escoucinhar na areia e às trombadas nas dunas, berrando como um doido, barafustando de espinha dorsal erguida como tirano a quem não arrefece a ira...
A gândara, silenciosa e erma, de pinheiros hirtos como a soldadesca impávida que não se move nem pestaneja e por onde vagueiam sombras de que não se entendem as formas à maneira que o sol desanda na sua elipse -- alinhavada de carreiritos estreitos que em certa quadra do ano as moças que vão à cata das pinhas, à caruma e ao rapão, palmilham de bustos alçados e quadris coleantes, num formigueiro polícromo e alegre...
E, já que falo das moças, deixem-me concluir: -- nenhuma delas possui beleza clássica que entonteça, ou que perturbe, mas não lhes escasseia a graça dum sorriso tentador, e elegância fenícia, delevelmente mutilada e a luz vibrante duns olhos copiada da luz do sol à hora rútila das sestas...
Anda por aqui um doido que, como uma sombra, viscosa como a lama e trágica como o perfil de todas as sombras que o dedo maldito do fatalismo desenha e imprime nas paredes negras de certas vidas, leva as manhãs num vozeirão de tribuno, pletórico de frasalhões aprendidos e decorados no tempo em que ainda tinha juízo, a correr as ruas a a assaltar quem passa, protestando cóleras e inflingindo insultos, àquilo que ele supõe ser o morbus que destrói e deteriora os alicerces milenários da sociedade e do mundo, da civilização e dos costumes...
É alto e forte como as paredes mestras dos antigos castelos.
O seu carão moreno, semeado de rugas profundas, onde baila e vibra a chama azul e ingénua duns olhos que eu vi algures descritos nuns versos de Espronceda, tem a expressão indómita dum batalhador que não se deixa vencer a golpes de cutelo...
Às vezes fico-me a pensar se este doido que anda por aqui, só nas manhãs em que o sol doira os prados e as veigas, namorado da luz, arremedando com a sua cabeleira que lhe cai desmazeladamente sobre os ombros, os Apóstolos e os revolucionários, não devia ser cuidadosamente escutado por tantos que por aí andam a semear teorias e a impingir princípios -- de que nunca se vêm os fins...
Talvez que aprendessem com o doido -- com este doido que num vozeirão de tribuno, apregoa, em frases onde abunda o bom estilo e onde não escasseia a ironia que contunde, fere e faz sangrar, aquilo que para ele e para muitos que passam por doidos, mas que têm juízo às carradas -- é a traça e o gorgulho que dizima e rói as aduelas do mundo e as arcadas sobre que assenta a civilização...

1945

Paisagem do Dia Ausente, Porto, Edições AOV, 1947


Comentário - Um texto, como tantos outros, de exaltação da terra de adopção, com introdução de um característico do lugar, que sempre os há. Mas também há expressões que me fascinam, denotando um trabalhar lúdico das palavras: "para aqui me cuspiu um solavanco brusco e destrambelhado da carripana que nos transporta do berço à sepultura", "brincalhotando no ar a chuva miúda"; "amesend[ar-se] com a morte".


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